Entre palcos e mundos: Kafka à Beira-Mar através do olhar do Psicodrama Psicanalítico de Grupo
- Telma Batista

- 15 de set.
- 3 min de leitura

Nas férias de verão, entre o som do mar e o calor do sol, Kafka à Beira-Mar tornou-se a companhia que me conduziu para além da paisagem visível. A cada página, tinha a sensação de estar a assistir a uma encenação íntima, em que realidade e sonho se misturavam como num palco onde nunca cai o pano. Foi então que percebi como a experiência da leitura se aproximava da lógica do psicodrama psicanalítico de grupo: tal como no livro de Murakami, também aí se atravessam mundos internos e externos, e cada cena abre espaço para ressignificar o que parecia imóvel. Em Kafka à Beira-Mar, Haruki Murakami convida-nos a atravessar um território onde realidade e imaginação se entrelaçam, onde as personagens circulam entre mundos internos e externos como se trocassem de palco sem que a cortina alguma vez caia. É precisamente aqui que o psicodrama psicanalítico de grupo nos oferece uma lente privilegiada para compreender a obra. No romance, seguimos dois fios narrativos: Kafka Tamura, um jovem que foge de casa para escapar a uma profecia familiar e encontrar a sua identidade, e Nakata, um idoso que perdeu a memória e a capacidade de ler, mas ganhou o dom de comunicar com gatos e perceber dimensões invisíveis da realidade. Ambos percorrem viagens que não são apenas geográficas — são travessias da alma. O palco interno e o palco externo. No psicodrama, distinguimos o palco interno, onde vivem memórias, fantasias e conflitos, e o palco externo, onde atuamos no mundo e interagimos uns com os outros. Em Kafka à Beira-Mar, Murakami mostra-nos como estes dois palcos podem sobrepor-se: sonhos que invadem a vigília, símbolos que se tornam palpáveis, encontros improváveis que ganham consistência. No grupo, acontece algo semelhante: cenas interiores de um participante são encenadas com a ajuda dos restantes, revelando a profundidade e a complexidade do inconsciente — uma lógica muito próxima da narrativa onírica da história do livro. O duplo, o espelho e o encontro. No psicodrama psicanalítico, o grupo funciona como uma rede de espelhos: cada pessoa pode refletir, representar ou dar voz a aspetos do protagonista que este talvez não reconheça em si próprio. Em Kafka à Beira-Mar, alguns personagens cumprem esse papel de “duplo” psíquico — Nakata, por exemplo, encarna a parte de Kafka que é intuitiva, desligada da razão linear, mas profundamente ligada ao mistério. ao encenar cenas internas, o protagonista pode encontrar o seu “Nakata” interior — essa parte que sabe, mesmo sem compreender. Mitos pessoais e heranças invisíveis A profecia que persegue Kafka ecoa como um mito familiar — algo que, no psicodrama, exploramos através de papéis herdados, padrões inconscientes que atravessam gerações. No trabalho de grupo, ao encenar esses mitos e reposicionar os papéis, abre-se espaço para ressignificar e transformar. Murakami lembra-nos que romper um mito exige atravessar zonas sombrias e resgatar fragmentos esquecidos de si mesmo. Final aberto, processo vivo. Tal como o enredo do livro não oferece respostas definitivas, o psicodrama psicanalítico de grupo não procura conclusões fechadas. O seu propósito é ampliar a consciência, permitir o movimento entre palco interno e externo, entre realidade e imaginação, até que novas formas de viver se tornem possíveis. No fundo, Kafka à Beira-Mar pode ser lido como uma grande sessão psicodramática em dois atos, com múltiplos protagonistas e um diretor invisível — tal como no grupo, onde a verdade não reside no literal, mas no que é sentido e vivido.




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