Psicodrama Psicanalítico Online durante a Pandemia
Pensar o corpo em psicodrama psicanalítico nestes tempos de profunda estranheza, é a tarefa que temos em mãos. Este vírus veio trazer ao nosso mundo um impacto traumático, provocou uma onda de tal intensidade, que muitos têm comparado a um tsunami ou a uma guerra. Eu, um filho dos anos 70, assisti ainda jovem às tensões da guerra fria, também aí as angústias de extinção da espécie que a 3ª guerra mundial representava, faziam parte do nosso quotidiano, e só mais tarde amenizadas através da dissolução da União Soviética. Esta realidade foi retratada no imaginário da 7ª arte, através do “Planeta dos Macacos”[i], “O Dia Seguinte”[ii] ou “Jogos de Guerra”[iii], todos filmes que me faziam recear e pensar sobre a capacidade humana para a destruição presente através da ameaça nuclear.
A ameaça hoje é diferente, mas nem por isso menos angustiante. Temos em pano de fundo as alterações climáticas que ameaçam este grande corpo planetário, e agora uma pandemia. Uma desconcertante estranheza nos atingiu, por este vírus que nos isolou uns dos outros, sem toque e sem abraço, deixou os aviões em terra, os barcos sem poder atracar, os doentes sem visitas, isolados, incomunicáveis, imagens de mortos a ser enterrados em valas comuns num cenário que julgava só acontecer em genocídios ou guerras mundiais, e as cidades vazias de pessoas, de vida, cheias de silêncio convidando à reaproximacão dos animais selvagens, confusos, atónitos, como nós!
É neste palco que nos vimos privados dos nossos grupos de psicodrama. Nesta emergência mundial de saúde pública que nos atingiu, ficamos amputados, castrados do que antes tínhamos como garantido. Não nos podemos reunir, estar presentes numa sala, suspendem-se os grupos. Os grupos pareciam-me impossíveis através da internet, como é que ia dramatizar, fazer jogos, usar o velho truque que todo o diretor já usou quando está sem ideias e nada no grupo lhe parece suficientemente relevante, e põe todos no palco, pondo os corpos a mexer, a interagir, procurando no movimento espontâneo o emergir da palavra, o significado.
O corpo já não está presente, chega-nos por via tecnológica. Agora temos o grupo - como dizia uma paciente - sentido como um estendal onde cada um pode pendurar a sua roupa molhada, partilhando a sua sensibilidade a esta contiguidade das janelinhas que o virtual apresenta. Podemos ter a tendência a individualizar mais o trabalho, e o processo e interação grupal ficar mais pobre, mas não é assim necessariamente. A voz, as mãos e as caras estão presentes, parece que ficou uma parte, e sendo o todo mais do que a soma das suas partes, em cada parte também se encontra a marca indelével do todo. Estará o todo presente? Na nossa opinião, a impossibilidade da presença física limita o encontro psicanalítico de grupo. Ficará a comunicação de inconsciente para inconsciente prejudicada? Será no mínimo alterada. Sabemos como é necessário termos em perspectiva a experiência sensório-motora, o conceito proprioceptivo de como apreendemos o outro como um todo e não apenas através de um dos órgãos dos sentidos (visão ou audição).
Se esta questão é verdade na díade analítica, não ficará mais amplificada na interação grupal intersubjetiva do psicodrama? Na imagem virtual das “janelinhas”, em regra encontramos uma cara com ombros, mãos e pouco mais e, se é verdade que a face humana tem uma riqueza emocional quase sem paralelo, e que a tonalidade da voz confere uma intensidade, afecto e musicalidade idiossincrática, oferecendo-nos uma fonte de contato significativo, a sensação de perda é na minha opinião inegável.
E agora como fazer? Como usamos o corpo para pôr a alma em ação? Como dirigir a caravela psicodramática quando não temos o vento do corpo para empurrar?
Não tenho soluções definitivas, tento dar resposta em cada sessão a este problema. Noutro dia, o grupo estava a viver angústias de fragmentação face a uma fantasia de desmembramento. Esta fantasia era o envelope psíquico (Anzieu, 1984, p.122)[iv] que estava a servir de continente para os investimentos pulsionais do grupo. Nesta sessão, falavam de como a periodicidade quinzenal provocava uma descontinuidade e assim, o esquecimento. Sentiam a falta de um elemento importante do grupo, de quando é que isto do COVID acaba, de como era bom quando estávamos presentes, da incerteza sobre quando podemos recuperar a presença perdida, ou talvez nunca mais venha a ser possível. No entanto, os conteúdos eram telegráficos e os pacientes não os desenvolviam. No meio deste discurso comum a todo o grupo, um dos elementos disse aparentemente fora de contexto que, cortou o bigode (característica física que sempre o diferenciou). Gerou-se uma conversa de perder o que se tinha, quem já teve bigode no passado ou não.
Foi então proposto todos fazerem um bigode no papel que depois pudessem pôr na cara, excepto a Ego-auxiliar, que representava as partes perdidas, em falta no self dos elementos do grupo. O corpo esteve presente, o bigode foi o símbolo em palco da falta, para a projeção através do corpo imaginado, criativo onde a representação dos conteúdos foi experimentada. Olhemos os diferentes bigodes: surge o bigodinho, símbolo da inferioridade e vulnerabilidade narcísica com a qual João não suportou ver-se deitando-o fora. O bi-gode, clivado entre a direita e a esquerda, que Vítor comunicou representar o que diz e o que fica não-dito, não-pensado dentro de si. O by-God de Nuno, grandioso e narcisísico, ilustrando a defesa omnipotente e, finalmente o bigode psicológico, que Madalena diz reagir como um termómetro ao seu estado de humor. Se estiver bem disposta, vai para cima, se estiver triste vai para baixo.
Apareceram bigodes diferentes, mas a interação com quem não tinha (ego-auxiliar), com a falta, era evitada numa atitude comum a todo o grupo, não queriam saber o que se tinha passado, não havia curiosidade sobre isso, num movimento que interpretámos como de intolerância à perda que estamos todos a viver, mas também de medo de perda de capacidades do próprio self, da impossibilidade de mudança e de um projeto terapêutico comprometido e paralisado. Esta sessão veio a revelar-se desbloqueadora do trabalho psicodramático, potenciando a representação do conflito entre as angústias perante as faltas e os mecanismos de defesa maníacos que impediam elaborar o luto. A um nível pré-genital sentiu-se uma angústia de fragmentação do self sobretudo através de João, ao nível genital tomou a forma de uma angústia de castração, possibilitando uma elaboração da separação mais integrada. Renasceu a possibilidade de descoberta e uma fecundação geradora de significados. Na ligação dos conteúdos representados temos: a falha narcísica, a defesa omnipotente, a clivagem interno/externo e o afecto que regula e/ou condiciona a potência e a fecundidade do pensar e fazer bebés. A verdade é que depois desta sessão sentimos que o grupo renasceu.
Não consigo afirmar com segurança se reencontrámos o corpo real neste psicodrama virtual, mas sendo mais difícil é seguramente possível o encontro num psicodrama psicanalítico.
Alexandre Castro e Silva
22 de Julho de 2020
II Encontro Online SPPPG
4 anos depois,
...de ter escrito e apresentado este texto, o mundo mudou ou apenas repete os mesmos erros? No contexto geopolítico houve vários acontecimentos terríveis, em fevereiro de 2022 começou a guerra na Ucrânia e a ameaça nuclear está presente como não estava há 30 anos. As catástrofes naturais sucedem-se e a transição energética evolui demasiado devagar. Trump voltou ao poder nos E.U.A. e a guerra Israelo-Palestiniana voltou a agravar-se alastrando-se a outros países do médio oriente.
O psicodrama psicanalítico de grupo online já não é necessário, pudemos voltar aos consultórios e, assistimos a uma generalização das psicoterapias online. Atualmente temos colegas a fazer workshops e psicodrama público online, divulgando a teoria e técnica psicodramática a um público mais alargado. E a nossa representação do corpo alterou-se? As patologias que nos surgem no trabalho clínico são as mesmas? Esse será um tema para outros posts do nosso blog.
Alexandre Castro e Silva
27-12-2024
[i] Planet of the Apes, 1968; realizado por Franklin J. Shaffner
[ii] The Day After, 1983; realizado por Nicholas Meyer
[iii] Wargames, 1983; realizado por John Badham
[iv] Anzieu, D. (1984, 1975). The Group and the Unconscious
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