Domina no teatro português do século XXI, acentuadamente na última década, um sistema subjectivo de ‘censura’, cuja se opera na inversa da Psiké. Não é o continente do Consciente que ‘vigia’ o do Inconsciente, mas é este, no sentido de pensamento tendencial dominante (ao caso no meio cultural decisório ou influencer), que delimita e limita a expressão artística do primeiro. Isto é: a censura de facto e económica, impede a asserção
de temas, que sejam ‘desviados’ daquilo a que antes era tido por ‘desviante’ da norma. Questões - inegavelmente centrais na discussão contemporânea, como a crítica à homofobia ou afirmação dos direitos homossexuais e de outras opções de género ou como o combate à xenofobia, racismo e congéneres – tomaram a categoria (kantiana) de ‘valor absoluto’, impedindo, objectivamente (pela asfixia económica (1)) a discussão e asserção de temas, igualmente cruciais, como as questões das opressões políticas e/ou (também) económicas; ou mesmo o tratamento de temas universais em tempo e espaço, como, entre muitos exemplos, o ciúme, o medo, o amor, o ódio, a culpa – ou o que seja, de forma transversal e não especificamente direccionada para os temas supracitados.
Estas questões, em última análise, contribuem para um, mais cedo ou mais tarde, efeito de boomerang, estrumando terreno propício a iguais reacções censórias que virão anular a necessidade de TAMBÉM (mas não só) tratar dos assuntos que, para os criadores, (quase) se tornaram obrigatórios, mesmo que não o seja assim enunciado, mas na sua inversa. O que até é compreensível que, ainda, mereça uma discriminação positiva não pode tornar-se em elemento impeditivo de outras abordagens temáticas. Em última análise (e demos à palavra o sentido duplo com que se usa, particularmente neste espaço, naturalmente) tornam as questões ‘imanentes’ (de novo com Kant) à necessidade das abordagens de assuntos antes tidos (e por muitos ainda tidos) como ‘desviantes’ num ‘imperativo categórico’ (prossegue-se com Kant) de realizar “A Vida de Galileu” ou “À Espera de Godot”(2), obras essenciais da dramaturgia do século XX, tal como são e não numa releitura que as adeque aos temas ‘apoiados’.
Este rei vai nu, mas, igualmente grave, fornece argumentos para a reacção (também no significado político) vir a ‘re-proibir’ o nu do Inconsciente, que se pretende figurar e isentar do moralismo e perseguição.
(1)Refiro-me à indispensabilidade de um teatro de serviço público, como bem apontou Strehler, ter de ser, por natureza deficitário. Isto é, irrealizável se sem apoios estatais (ou outros, mas, no caso português, inexistentes).
(2)Opera Magna de cada um dos dois dramaturgos mais marcantes das duas correntes dominantes na 2ª metade do Século XX na Europa: respectivamente Brecht e Beckett.
Castro Guedes, Teatrólogo, encenador, dramaturgo
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